terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Os dóceis admiradores de gatos vadios



Que têm de comum um comerciante octogenário, um poeta, uma enfermeira aposentada e uma pintora? Os gatos. A amizade pelos gatos sem dono, que vivem em quintais, imóveis em ruína ou na solidão dos cemitérios.


Dóceis animais lhes chamava Eugénio de Andrade, que sempre os teve por companhia e lhes deu abrigo poético nos seus livros. Adorados no antigo Egipto, os gatos - é dos gatos que falamos - continuam hoje a cativar imprevistos admiradores, entre portas ou a céu aberto.

É uma dedicação singular, uma amizade persistente. Talvez por os "bichos serem melhores do que certas pessoas". Há quem se levante com o cantar do galo, todos os dias do ano, para cuidar dos bichos. Estes sem coleira, nem nome carinhoso ou de personagem famosa. Gatos apenas. Vadios, privados de casa. Vivem nos jardins, quintais e imóveis abandonados da cidade. Dão alegria e movimento a cemitérios e becos escuros.

Por amor aos gatos, aos 82 anos, Fernando Mendes, pequeno comerciante, continua a levantar-se entre as quatro e as cinco da manhã. Começa na Praça Carlos Alberto, percorre a Rua de Cedofeita, na cidade do Porto. Sozinho, movido por uma bondade quase inexplicável. Termina a ronda, sacos vazios e leve de espírito, depois de matar a fome a mais de trinta gatos sem casa e sem dono.

Por amor aos gatos, Manuel António Pina, durante largo período, foi visita regular do cemitério de Agramonte, no Porto. À entrada, uma placa avisa:  É proibido alimentar os animais. O jornalista e poeta furava o bloqueio - e alimentava os animais que velam os mortos com seu luminoso silêncio.

Pina vive agora no outro lado do rio, em Gaia. Os gatos continuam a povoar os seus poemas e a sua casa, as visitas aos amigos de Agramonte são mais raras. Mas , deitados ao sol da manhã, ou debaixo das velhas camélias, os discretos animais do cemitério, cerca de meia centena, continuam a receber visitas diárias.

Os jornalistas sentiram também directamente o excessivo zelo em defesa da imagem imaculada do local. O repórter fotográfico só poderia trabalhar com autorização do gabinete de comunicação da autarquia do Porto. Num breve passeio por uma das alas do enorme cemitério, sempre vigiados à distância por duas sisudas personagens, encontrámos diversos gatos. "Dóceis animais", sem dúvida, a humanizar um lugar que não deve ser marcado só pela tristeza.

http://dn.sapo.pt/gente/interior.aspx?content_id=1715589

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