Alfredo Barroso – Semanário Expresso – 21 Março 1998
Aprecio os políticos felinos como gatos, detesto os políticos que ladram como cães. É uma singela homenagem que assim presto a uma gata que se chamava Twiggy, por ser tão bonita e fininha como a modelo a quem roubámos o nome. Morreu na terça-feira passada, vitima de doença incurável, praticamente nos braços da sua dona, a minha filha mais nova. Durante quase 16 anos, viveu feliz no meio das suas amigas, as minhas duas filhas e a mãe delas, que sempre a trataram como Benjamim Spock gostava que tratassem as crianças – como uma princesa. Na casa em que morava, a Twiggy era uma princesa.
Convivi com ela poucos anos, mas ela nunca mais se esqueceu de mim. Visitava-me uma vez por outra. No tempo em que ainda havia máquinas de escrever, saltava para cima da mesa em que eu trabalhava e ali ficava, em silêncio, no meio da papelada e dos dicionários, enquanto eu martelava os textos furiosos que costumo redigir desde que me conheço. Nesses momentos, ela era o meu pequeno tigre de estimação. Quando lhe passava distraidamente a mão pelo pêlo, numa festa, a Twiggy ronronava e era fonte de inspiração.
Tal como no poema de Baudelaire – “les chats puissants et doux, orgueil de la maison” – a Twiggy era o orgulho da casa, que à servidão nunca se dobrou. Era bem um exemplo daqueles versos em que o poeta evoca os gatos como “amigos da volúpia e também da ciência”, que “adoptam ao sonhar as nobres atitudes das esfinges deitadas nos confins do mundo, parecendo adormecer no seu sonho sem fim”. Mas a Twiggy também correspondia à visão mais doméstica que Mallarmé tinha dos felinos. “O gato é necessário a um interior. Completa-o. É ele que faz brilhar os móveis e lhes arredonda os ângulos (…). É bem o derradeiro “bibelot”, a coroação suprema. A Twiggy era, em suma, o “genius loci” de que falava Théophile Gautier ao descrever os gatos que “erram pela casa em patas de veludo, como se fossem o génio do lugar”.
Provavelmente não tem fim a lista de poetas, romancistas, filósofos e ensaistas que sempre manifestaram a sua preferência pelos gatos. Dante, Petrarca, Montaigne, Chateaubriand (que tinha um gato, Micetto, oferecido pelo Papa Leão XII), Barbey d’Aurevilly, Gérard de Nerval, Émile Zola, Ernest Renan, André Malraux fazem parte dessa lista interminável. Mas talvez ninguém tenha explicado melhor as razões dessa preferência do que T.S. Elliot, um dos maiores poetas do Séc. XX, no seu livro dos gatos, o “Old Possum’s Book of Practical Cats”, no qual, aliás, se inspirou Andrew Lloyd Weber para compor a célebre comédia musical “Cats”. Como escreveu T. S. Elliot, “que semelhantes são, gatos e nós , e outras pessoas, afinal dotadas de maneiras diferentes de pensar”! E era peremptório: Deixem-me dizer: GATO NÃO É CÃO”. (assim mesmo, com maiúsculas). E explicava: “Por via de regra, o Cão de bom tom sempre se dispõe a ser um palhaço, não sabe fingir um ar afectado e chega a perder toda a compostura, deixa-se enganar com facilidade, basta que lhe façam festas no pescoço”.
Um gato, “QUALQUER GATO”, nunca. “Que fique bem claro, volto a dizer: Um Cão é um Cão – UM GATO É UM GATO”. Nem mais.
Alimentada pelas bibliotecas e, sobretudo, pelo convívio com a Twiggy, a minha paixão pelos gatos é muito antiga. Um dos meus livros de cabeceira é, aliás, uma pequena obra-prima escrita há 16 anos por um senhor chamado Jean-Louis Hue: Le chat dans tous ses états. Não é um livro de conselhos práticos nem de elucubrações antropomórficas, mas uma história cheia de histórias deliciosas e divertidas, um itinerário físico dos gatos descrito com enorme ternura, inteligência, subtileza e talento literário. É um livro pequenino, com centena e meia de páginas, que até quis traduzir, mas nenhuma editora lhe pegou.
Para além de uma grande tristeza, nem sei bem o que mais se sente quando morre um gato de que tanto se gostava. Socorro-me do ultimo parágrafo que Doris Lessing escreveu no seu livro sobre Gatos e mais Gatos : “Conhecendo gatos, uma vida inteira com gatos, o que resta é um sedimento de mágoa bem diferente do que é devido aos humanos: composto de dor pelo seu desamparo, de culpa em nome de nós todos”.
É ISTO QUE SINTO QUANDO OS VEJO ABANDONADOS NAS RUAS.
Aprecio os políticos felinos como gatos, detesto os políticos que ladram como cães. É uma singela homenagem que assim presto a uma gata que se chamava Twiggy, por ser tão bonita e fininha como a modelo a quem roubámos o nome. Morreu na terça-feira passada, vitima de doença incurável, praticamente nos braços da sua dona, a minha filha mais nova. Durante quase 16 anos, viveu feliz no meio das suas amigas, as minhas duas filhas e a mãe delas, que sempre a trataram como Benjamim Spock gostava que tratassem as crianças – como uma princesa. Na casa em que morava, a Twiggy era uma princesa.
Convivi com ela poucos anos, mas ela nunca mais se esqueceu de mim. Visitava-me uma vez por outra. No tempo em que ainda havia máquinas de escrever, saltava para cima da mesa em que eu trabalhava e ali ficava, em silêncio, no meio da papelada e dos dicionários, enquanto eu martelava os textos furiosos que costumo redigir desde que me conheço. Nesses momentos, ela era o meu pequeno tigre de estimação. Quando lhe passava distraidamente a mão pelo pêlo, numa festa, a Twiggy ronronava e era fonte de inspiração.
Tal como no poema de Baudelaire – “les chats puissants et doux, orgueil de la maison” – a Twiggy era o orgulho da casa, que à servidão nunca se dobrou. Era bem um exemplo daqueles versos em que o poeta evoca os gatos como “amigos da volúpia e também da ciência”, que “adoptam ao sonhar as nobres atitudes das esfinges deitadas nos confins do mundo, parecendo adormecer no seu sonho sem fim”. Mas a Twiggy também correspondia à visão mais doméstica que Mallarmé tinha dos felinos. “O gato é necessário a um interior. Completa-o. É ele que faz brilhar os móveis e lhes arredonda os ângulos (…). É bem o derradeiro “bibelot”, a coroação suprema. A Twiggy era, em suma, o “genius loci” de que falava Théophile Gautier ao descrever os gatos que “erram pela casa em patas de veludo, como se fossem o génio do lugar”.
Provavelmente não tem fim a lista de poetas, romancistas, filósofos e ensaistas que sempre manifestaram a sua preferência pelos gatos. Dante, Petrarca, Montaigne, Chateaubriand (que tinha um gato, Micetto, oferecido pelo Papa Leão XII), Barbey d’Aurevilly, Gérard de Nerval, Émile Zola, Ernest Renan, André Malraux fazem parte dessa lista interminável. Mas talvez ninguém tenha explicado melhor as razões dessa preferência do que T.S. Elliot, um dos maiores poetas do Séc. XX, no seu livro dos gatos, o “Old Possum’s Book of Practical Cats”, no qual, aliás, se inspirou Andrew Lloyd Weber para compor a célebre comédia musical “Cats”. Como escreveu T. S. Elliot, “que semelhantes são, gatos e nós , e outras pessoas, afinal dotadas de maneiras diferentes de pensar”! E era peremptório: Deixem-me dizer: GATO NÃO É CÃO”. (assim mesmo, com maiúsculas). E explicava: “Por via de regra, o Cão de bom tom sempre se dispõe a ser um palhaço, não sabe fingir um ar afectado e chega a perder toda a compostura, deixa-se enganar com facilidade, basta que lhe façam festas no pescoço”.
Um gato, “QUALQUER GATO”, nunca. “Que fique bem claro, volto a dizer: Um Cão é um Cão – UM GATO É UM GATO”. Nem mais.
Alimentada pelas bibliotecas e, sobretudo, pelo convívio com a Twiggy, a minha paixão pelos gatos é muito antiga. Um dos meus livros de cabeceira é, aliás, uma pequena obra-prima escrita há 16 anos por um senhor chamado Jean-Louis Hue: Le chat dans tous ses états. Não é um livro de conselhos práticos nem de elucubrações antropomórficas, mas uma história cheia de histórias deliciosas e divertidas, um itinerário físico dos gatos descrito com enorme ternura, inteligência, subtileza e talento literário. É um livro pequenino, com centena e meia de páginas, que até quis traduzir, mas nenhuma editora lhe pegou.
Para além de uma grande tristeza, nem sei bem o que mais se sente quando morre um gato de que tanto se gostava. Socorro-me do ultimo parágrafo que Doris Lessing escreveu no seu livro sobre Gatos e mais Gatos : “Conhecendo gatos, uma vida inteira com gatos, o que resta é um sedimento de mágoa bem diferente do que é devido aos humanos: composto de dor pelo seu desamparo, de culpa em nome de nós todos”.
É ISTO QUE SINTO QUANDO OS VEJO ABANDONADOS NAS RUAS.
Conforta-me saber que, graças às suas três grandes amigas, sobretudo à sua dona, não foi assim com a Twiggy. Nunca esteve desamparada e viveu uma vida feliz.
Adeus, Princesa.
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